Porque as perguntas realmente sérias são apenas
aquelas que uma criança pode formular.
Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas sérias.
Milan Kundera
Alguns livros infantis têm uma sabedoria intrínseca. Com o poder de simplificar as questões mais complexas da vida humana, trazem à tona temas importantes e delicados. Não pela lógica ou pela sofisticação de pensamento, mas pela emoção. São verdadeiras preciosidades.
Tenho uma pequena coleção de exemplares que remetem à longevidade. Desses, há um realmente especial: Guilherme Augusto Araújo Fernandes - um nome comprido, que já diz a que vem, instigando a nossa curiosidade.
É um livro arrebatador. Conquista corações, abre mentes e trata de uma questão essencial às nossas vidas: a memória – cuja perda os portadores de demência enfrentam.
Não há nada mais complexo para explicar, do ponto de vista técnico-científico. Mas, ao mesmo tempo, pode ser de uma simplicidade cativante, como o livro mostra.
A história, escrita pela australiana Merrion (Mem) Fox, gira em torno de uma pergunta: o que é memória?
Quem a formula é Guilherme, o menino que dá título ao livro. Ele reside ao lado de uma instituição para pessoas idosas e está sempre às voltas com os velhos e velhas de lá. Entre os residentes, a sua pessoa favorita é D. Antônia Maria Diniz Cordeiro, que tem um nome tão longo quando o dele.
Quando escuta seus pais comentarem que D. Antônia perdeu a memória, ele resolve procurar o que ela tinha perdido.
Mas, primeiro, precisa entender o que vem a ser memória. Faz a mesma pergunta aos adultos em seu entorno – os pais, os idosos da instituição: o que é memória?
Cada um, a sua maneira, dá a sua percepção sobre isso. Ao coletar as respostas, Guilherme sai em busca de coisas e objetos que remetam às descrições que ouviu – algo quente, algo alegre... e assim por diante.
Só isso é muito significativo - revela que a memória é permeada de subjetividades e ganha contornos e cores diferentes para cada um. É a individualização do que é mais importante dentro da experimentação vivida.
Por definição, memória é a capacidade do cérebro de compilar, armazenar e recuperar informações com base em experiências passadas. Embora a nossa capacidade de armazená-las seja grande, não é tão fácil acessá-las. Somos mais propensos a registrar e resgatar as que estão ligadas à emoção.
Assim, ao traduzir as narrativas sobre memória nos objetos que coleta, Guilherme o faz com o que tem valor para ele. Apesar da tenra idade já está construindo suas memórias afetivas. E, ao entregar para D. Antônia o que recolheu, a vê ressignificar cada um dos objetos de acordo com suas lembranças, ainda presentes.
O fato é que, apenas movido pelo desejo genuíno de ajudar a sua amiga, Guilherme acaba promovendo, a ela, uma sessão de reminiscências – técnica usada para evocar lembranças em pessoas idosas.
Em sua ingenuidade, Guilherme faz mais por D. Antônia do que seus pais que sentem pena dela. Esse é o encanto da vida: sermos tocados pelo coração – é isso que nos faz humanos.
O livro tem um desfecho admirável, com um dos objetos que os uniu – uma bola, no primeiro dia em que se encontraram. E um ciclo que se completa.
Guilherme e Antônia têm, acima de tudo, um encontro de afetos e emoções, gerando sentimentos que vão criando e recriando memórias. E, nesse relacionamento, o amor e o carinho se sobrepõem às diferenças, especialmente de idades, como deveria ser.
Mem Fox considera esse o seu livro mais importante. Publicado em 1995, já foi traduzido e publicado em vários idiomas.
O título original, em inglês, é Wilfrid Gordon McDonald Partridge - o nome do seu pai, que herdou Wilfrid Gordon do seu avô. Este faleceu aos 96 anos, a mesma idade de Antônia, e vivia em uma instituição para idosos. Ela o visitava com frequência e conviveu, prazerosamente, com os residentes no local.
Foi inspirada nessas relações e nas memórias de pessoas próximas que Mem Fox escreveu essa história. Ela defende a convivência intergeracional e acredita que a relação entre crianças e idosos pode ser muito benéfica para ambos.
Todo o livro é uma colcha de retalhos - fatos, eventos e observações que mesclam a vida real da autora e as inspirações que vieram a partir de sua própria história.
É, também, um exemplo do enorme potencial criativo e humano quando unimos as fases da vida. Trazendo infância e velhice juntas podemos estimular reflexões sobre pessoas e sentimentos, além de promovemos novas construções e relações mais solidárias.
Guilherme Augusto Araújo Fernandes traz ainda uma bela lição. Com sua atenção a D. Antônia, Guilherme nos ensina sobre cuidado – em seu sentido mais amplo: prestar atenção, ter interesse, dedicar esforço e tempo, garantir o bem-estar de alguém.
Essa é tarefa de toda a humanidade. Não há nada mais urgente do que incentivar uma cultura de cuidado na sociedade que envelhece.
Observação:
À convite do Coletivo Filhas da Mãe, participei do Programa Terceiras Intenções - Ano 2: Setembro Roxo e as Demências. Encerrei a entrevista indicando este livro, que me inspirou a escrever este artigo.
Caso você deseje ver também a entrevista, aqui está o link: